Ao fim da tarde, quando a luz baixa e o rio abranda a pressa, o Parque Fluvial de Bolfiar, na freguesia da Borralha, parece uma sala de estar ao ar livre onde Águeda se reencontra. Há miúdos com os pés na água, casais no relvado a dividir uma manta, dois caminhantes que chegam pelo carreiro ensombrado e um grupo que afina as brasas no parque de merendas. Nada disto é novo — é apenas a forma contemporânea de uma relação antiga entre a terra e o rio Águeda, renovada com um cuidado que, entretanto, se aprendeu a ter.










Das memórias soltas à forma de parque
Antes de ser “parque”, Bolfiar foi lugar de usos livres: o banho apressado nos dias quentes, a conversa à sombra, o lavar da roupa e das histórias, a travessia de quem conhece os passos do leito. O que hoje vemos — relvados cuidados, zonas de descanso, mesas, sombras generosas de amieiros e salgueiros, acessos simples e limpos à água — nasceu dessa memória oral e do entendimento de que a proximidade ao rio não é luxo; é identidade.
A transfiguração não fez tábua rasa: preservou-se o essencial — o correr da água clara e a proximidade da margem — e organizou-se o resto com modéstia: caminhos de terra batida, áreas definidas para piqueniques, um desenho que não se impõe à paisagem, antes se deixa conduzir por ela. Pouco cimento, quase nenhum ruído. E o miradouro de Bolfiar, ali perto, que oferece a perspetiva certa para perceber a razão de tanta fidelidade: o vale abre-se, o rio serpenteia, a cidade está próxima e, ainda assim, parece longe.






Um quotidiano feito de pequenos rituais
De manhã, chegam os caminhantes e praticantes de BTT, que usam Bolfiar como ponto de passagem para percursos mais longos. A meio do dia, famílias com geleiras ocupam as mesas sob as copas, e a margem ganha o som metálico das talheres e o cheiro a grelhado. À tarde, a água — mais fria do que o olho supõe — recebe quem quer refrescar o corpo e pacificar a cabeça. Ao entardecer, regressa a serenidade: só o rumor das folhas e o chapinhar breve de algum peixe quebram o silêncio.
Não há aqui espetáculos; há rotinas comunitárias. Um pai ensina a filha a respeitar a corrente (“sente a força do rio, mas não o desafies”), dois vizinhos trocam figos e conversas, uma senhora estende uma toalha de flores sobre a mesa de madeira, como quem reivindica, por umas horas, um pedaço de casa à beira-água.
Paisagem e matéria do lugar
Bolfiar mostra, em escala humana, o que o território é capaz de oferecer quando a intervenção é cuidadosa: luz filtrada, sombra viva, cheiro a água e resina, o verde em gradações entre o musgo e a folhagem. O rio corre com uma cadência de vidro, ora liso, ora rugoso, e desenha, junto às margens, remansos onde a corrente abranda e a superfície espelha o céu. Nas pedras maiores, secas ao sol, fica a geografia dos banhistas: mochilas, chinelos, um livro aberto, silêncio.








Uma lição de pertença
Nada em Bolfiar é monumental. E, no entanto, tudo importa: a proximidade à cidade, a facilidade de acesso, o sentimento de segurança, a leitura intuitiva do espaço. O parque não se oferece como “destino”, mas como continuação natural da vida local: um sítio onde se celebra o pouco que basta — a água certa, a sombra certa, a conversa certa — e onde se aprende que o cuidado com o lugar é o que o mantém disponível para todos.
Bolfiar é, no fundo, uma lição de pertença: o rio não é cenário; é matéria de vida. E quando a comunidade o entende, instala-se esta paz discreta que vemos — uma paz feita de respeito, limpeza, tempo demorado e uma alegria mansa que não precisa de música alta para existir.
Serviço (para quem chega)
- Localização: margem do Rio Águeda, freguesia da Borralha (Águeda).
- Perfil do espaço: relvado e zonas naturais de margem, mesas de merendas, sombras abundantes; acessos simples ao leito do rio.
- Práticas recomendadas: levar saco para o lixo, evitar detergentes e vidros junto à água, respeitar a vegetação ribeirinha, moderar o volume sonoro.
- Melhor hora: primeiras horas da manhã e fim de tarde, quando a luz é oblíqua e o calor se rende.















Epílogo
Quando o sol finalmente se esconde atrás das copas e o rio toma a cor do cobre, percebemos que Bolfiar não é apenas um parque fluvial. É um pedaço de Águeda que regressou a Águeda, um lugar onde a natureza e a comunidade assinaram um pacto simples: enquanto houver cuidado, haverá casa na margem. E isso, numa época apressada, é notícia — e é crónica.
Fotos: Ryan Rubi (TVC/Notícias de Águeda)